terça-feira, 27 de abril de 2010

A VENDEDEIRA de FIGOS





OLHO lá para o fundo do tempo (que fiz eu de todos esses anos?...) e penso como foi bom o que vivi, como será bom o que ainda me fica para morrer ou para viver… Nesta hora em que o passado se prolonga em mim, neste momento exacto em que não sei o que sou nem o que quero, sinto-me envolvido por vozes e aleluias, por carícias vivas ou por promessas que ficaram nos olhos ou no esboçar dos gestos que as mãos só imaginaram.
E muito ao longe, e tão esplendorosa como nesse dia, no único em que vi, abre-se o meu deslumbramento de rapaz de catorze anos. Nunca aprendi o teu nome, mal te toquei na pele, e és ainda hoje uma das mulheres mais verdadeiras da minha vida. Uma das poucas que morrerão à minha cabeceira…
Estávamos todos no terraço da escola. Não consigo recordar o que aconteceu nesse dia para que às dez horas pudéssemos debruçar-nos na balaustrada da clausura. Não podíamos ir para o recreio do campo de jogos e o nosso entretém ficava-se no interrogar da rua manchada pelo ensombro das árvores alinhadas no passeio fronteiro.
Uns adivinhavam marcas de automóveis, mal os viam surgir à curva da Junqueira do lado de Belém, e assim jogavam a cigarro de onça; outros sonhavam na liberdade que não nos deixavam gozar, imaginando cinemas, raparigas na Baixa e passeios misteriosos que qualquer de nós ainda não conhecera; batiam-se outros em lutas braçais pelo cinturão de oiro do Constant Le Marin, champion de i’Europe et du Monde, como anunciava o França do Coliseu; alguns, ainda, ensaiavam passos de dança, imaginado raparigas concretas que levavam nos braços, entre o ritmo do charleston e do tango…
Eu procurava descobrir o Tejo para além do areal, na ânsia de reinventar o cais da minha terra que é o lugar do mundo onde nasço todos os dias.
Foi nessa abstracção que a tua voz moça e galharda apregoou os figos que trazias no cesto para vender. E logo toda a malta da camarata dos maiores se debruçou ainda mais na balaustrada de pedra, indo buscar-te lá abaixo, à rua, com os olhos perturbados de amos jovem para te erguerem num balancé, onde tu, rapariga descalça, ficaste a vogar nas longas noites da camarata e em romances que nunca pudéramos viver… Ou que nunca mais vivemos com esse encantamento que a tua voz entoada abriu na clausura do internato.
Os mais atrevidos perguntaram-te a como vendias os figos; respondeste a sorrir, vaidosa, por certo, de te veres admirada com tanto fervor por rapazes de escola. Tiraste um fruto da cesta, abriste-o com a graciosidade que só tu podias ter, rapariga descalça, e trincaste-o com apetite guloso, não sei de quê!, porque os teus olhos riram de prazer e de promessa.
Nenhum podia comprar-te figos, por falta de dinheiro, nem era possível ir lá abaixo buscá-los, rompendo o rigor da vigilância dos contínuos.
Foi talvez por isso que a tua intuição feminina quis inventar um jogo para os cavaleiros do bibe azul – o jogo dos frutos e do amor.
- Vocês não vão comprar nada, já sei – gritaste da rua com a mão em concha na tua boca bonita.
- Troco um figo por um beijo – arriscou um qualquer.
Fingiste não ouvir a resposta, ou não chegou lá abaixo porque todos a agarrámos antes de chegar a ti, e voltaste a gritar:
- Mas eu quero dar figos a um de vocês… Deixem-me escolher… A esse, sim, a esse…
E apontaste com o dedo para o cacho de cabeças ansiosas que se juntaram mesmo por cima do sítio donde nos desfiavas.
- Eu?!... – perguntou alguém.
- Não, o outro…
E foste rectificando até chegares a mim, que não dissera ainda uma só palavra, nem fora capaz de arrancar um gesto à exaltação do meu deslumbramento – talvez por isso, e por nada mais, fizeste a escolha. Mas que importa…
Fiquei aturdido e maravilhado. Não o teria ficado tanto se sobre a minha cabeça chovessem estrelas ou se o meu Tejo rompesse até ali para me levar consigo. Abri os braços, hesitei um instante, e sei que me pus a correr, voando pelas escadas de pedra, tonto e feliz, sem cuidar do que me interditavam. Entrei na sala de música, abri a janela e saltei num rompão para junto das grades que me separavam de ti, minha dadora de figos e de promessas.
- Bom dia! – sussurrei com medo de que a minha voz quebrasse o sonho.
- Bom dia!... Gostas de figos?...
-Gosto…
Estendeste um punhado na tua mão, que eu segurei, trémulo, incapaz de te contar o que sentia e o bem que me fazias, meu amor. Só nos mirámos bem nos olhos, não sei se sorrimos, sim, sorrimos, devias esperar de mim outras palavras e as palavras estavam todas escondidas no mistério do meu sangue.
Recuando, voltei a saltar a janela, tu ergueste a mão e eu respondi-te com a minha num aceno tímido. E abalei de novo, mas devagar, tão cheio de ti, que quando o contínuo me agarrou, não pude, não quis, não me interessou tentar a fuga.
Fiquei oito dias sem recreio.
E ainda bem. Porque no silêncio da pena que cumpri, sonhei contigo horas plenas de um lindo romance que ainda hoje me canta no sangue, apesar do tempo deste degredo…
Onde andarás tu, agora, meu amor de tantos anos?!


A Vendedeira de Figos in REDOL, António Alves (1963) Histórias Afluentes, 1ªed., Lisboa, Portugália Editora.

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